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Lucilia Diniz desmistifica o que significa viver bem a vida, por dentro e por fora.
A feijoada como bandeira de afirmação nacional. Leia minha última coluna publicada na revista Veja.
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Até 1922 o Brasil não era lá muito brasileiro.
Pelo menos no sentido que hoje nós nos consideramos brasileiros.
Não estou falando apenas de livros, pinturas e músicas, que ganharam naquele ano uma cara mais tropical, como se sabe.
Falo de um modo geral daquele país dos tempos da Belle Époque: da moda das melindrosas, ditada por Paris; do sotaque carregado das pessoas, em geral lusitano ou italianado, denunciando a origem de seus pais ou avós; do trânsito incipiente de carros importados nas vias acanhadas.
Penso sobretudo nas diferenças da gastronomia nesses cem anos de história.
Para se ter uma ideia, nem mesmo a feijoada existia.
“Ué, Lucilia, mas a feijoada não é uma herança dos escravos?”
Sim, mas eu me refiro ao prato que é saboreado hoje, nos almoços de quartas e sábados, com “paio, carne-seca, toucinho no caldeirão”, como enumerava aquela espécie de samba-receita de Chico Buarque.
A música lista os ingredientes: arroz branco, linguiça, torresmo, farofa, malagueta, couve mineira e laranja, Bahia ou da Seleta.
A feijoada foi cantada também em poesia.
Bem antes de Chico, seu futuro parceiro Vinicius de Moraes ensinava em versos uma amiga a prepará-la, acrescentando um detalhe que não lhe passou despercebido: a laranja, cortada em fatias, deve ser servida gelada.
Na versão do músico ou do poeta, essa é a feijoada que realmente faz jus ao adjetivo “completa”.
Por mais que a base seja a mesma, o prato guarda relação remota com o preparado nas senzalas até o século 19.
Difícil saber, pela grande distância no tempo, se nossos conterrâneos dos anos 20 realmente apreciavam tanto assim a feijoada.
Sofisticados como eram, provavelmente também não dispensavam a gastronomia mais glamurosa da época, em que, nas mesas mais chiques, lagostas com trufas e ervas finas disputavam espaço com coquetéis de camarão.
E talvez ainda não resistissem às almôndegas macias, às carnes com molhos encorpados ou às costeletas de vitela cozidas com parmesão, para citar alguns pontos altos do repertório ítalo-americano então em voga.
A feijoada, na realidade, seria mais do que uma questão de paladar.
Ela serviu aos propósitos de afirmação nacional, pauta que traduzia o espírito daquela época.
Surgida no Brasil profundo, ela foi uma espécie de contraponto à cozinha europeia.
Para os modernistas, que implicavam com o formalismo dos portugueses, a colocação pronominal obedecendo à forma mais culta deveria soar equivalente a um bacalhau muito salgado.
Medida com essa régua, a feijoada se equiparava à língua mais coloquial que eles defendiam.
E foi assim que, mais do que um prato, a feijoada virou uma bandeira.
Mas talvez a maior diferença entre a gastronomia de 1922 e 2022 seja que um século atrás o que imperava eram os alimentos frescos, in natura.
Não pela consciência nutricional daquela geração, mas, claro, pelo simples fato de que inexistiam a comida industrializada – com exceção, talvez, de uma goiabada em lata – e a geladeira, que por aqui só chegaria no final daquela década.
E, sem ela, a feijoada do poeta, desfalcada da laranja gelada, não seria completa.
Publicada originalmente na revista Veja.
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